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Conheça o holandês que é sócio do Bahia há quase 10 anos

Notícia
Entrevista
Publicada em 18 de dezembro de 2024 às 17:00 por Alan Vasconcelos
Este artigo faz parte de uma série de reportagens chamada "Bahia pelo Mundo", onde serão contadas as histórias de pessoas que não nasceram no Brasil, mas que possuem algum tipo de relação com o Esquadrão. Futuramente a série poderá ser transformada em um livro.
Thijs Schepers, holandês e sócio-torcedor do Bahia desde 2016
Thijs Schepers, holandês e sócio-torcedor do Bahia desde 2016

Introdução

Apesar dos mais de oito mil quilômetros que separam Salvador de Amsterdam, Bahia e Holanda (Países Baixos) possuem um ponto em comum em um passado remoto. Em 1624, quando o Brasil ainda engatinhava como colônia e Salvador era a principal potência banhada pelo oceano atlântico, os holandeses, motivados pelos conflitos com a União Ibérica, decidiram invadir a capital baiana para saquear nossas riquezas. A história seguiu, conflitos aconteceram, a resistência lutou e Salvador foi retomada um ano após a invasão. A partir daí, os holandeses passaram a ser problema dos pernambucanos.

400 anos se passaram, muita coisa mudou no mundo e uma “invenção” inglesa — onde o foco é inteiramente voltado a um objeto esférico revestido por couro — revolucionou nossas vidas. Hoje, apesar do passado turbulento, existe uma improvável ligação entre Bahia e Holanda, mas dessa vez não existem conflitos, tiros ou saqueamentos; apenas amor em sua forma mais pura. O nome dessa ligação é Thijs Schepers, um holandês de 31 anos que é completamente apaixonado pelo Bahia e possui seu nome cravado na história do clube.

A história de Thijs (pronunciado “Tais”, uma variante encurtada do nome Matthijs/Matheus) começa em Hapert, nos arredores de Eindhoven, grande polo tecnológico tanto dos Países Baixos quanto da Europa. Porém, apesar de todo o poderio científico existente na cidade, ela costuma ser lembrada (exclusivamente por nós, amantes do esporte) por ser o lar de uma outra potência holandesa que, por sinal, carrega seu nome: o PSV Eindhoven, um dos três grandes clubes do país e o time da infância de Thijs. 

Thijs Schepers explica a pronúncia correta do seu nome.

Sua paixão pelo time local acabou sendo ofuscada já na adolescência por um clube inglês que é conhecido por cativar o mundo pela atmosfera existente em seu estádio. Durante uma viagem a Londres, com sua mãe, os dois foram convencidos por um vendedor de rua a comprar uma camisa do Liverpool, que carregava o nome e o número do jogador britânico Michael Owen, que na época estava no Real Madrid. A camisa, por mais que fosse de um ex-jogador do clube, fez com que Thijs desenvolvesse um carinho pela equipe do noroeste da Inglaterra.

Na primeira vez em que ouviu Anfield cantar “You’ll Never Walk Alone” (você nunca caminhará sozinho, em tradução livre), sentiu um arrepio capaz de preencher todo o seu corpo, passando por cada centímetro de sua pele até chegar aos olhos, que brilhavam em total admiração ao não somente ver, mas principalmente ouvir o que estava fazendo a torcida do Liverpool. Ao presenciar isso no estádio, percebeu que precisava viajar mais, conhecer novas culturas e colecionar momentos especiais como esse que acabara de viver. Hapert havia se tornado pequena e ele já estava certo de que seu destino era conhecer o mundo.

O Bahia é o mundo e ao mundo ele veio

Thijs conta que o contexto em que esteve inserido facilitou bastante no desenvolvimento da sua paixão por viagens, se sente privilegiado e também lamenta que nem todos possam ter essa oportunidade. “Tive a sorte de nascer na Holanda, em um país rico e de ter pais financeiramente estáveis, então costumávamos viajar nas férias”.

Tendo isso como influência, resolveu fazer faculdade de Gestão de Turismo Internacional, onde teve aulas de espanhol, o que fez com que ficasse familiarizado com idiomas latinos. Foi graças à faculdade que teve a oportunidade de conhecer o Brasil, já em 2014, onde fez uma excursão pelo nordeste visitando os estados de Pernambuco e Rio Grande do Norte. Seus caminhos, porém, só foram se cruzar com os do Bahia no ano seguinte, quando retornou ao país, novamente em nome da universidade, para a realização de trabalhos voluntários.

Durante essa “expedição” a Salvador, fez alguns amigos que, assim como a maior parte da cidade, são torcedores do Bahia. Sabendo que Thijs é amante do futebol, nada mais oportuno que o levar para conhecer o principal evento cultural semanal de Salvador: um jogo do Bahia. A partida em questão foi o confronto contra o Ceará na final da Copa do Nordeste de 2015.

Mesmo sem ter visitado a Fonte Nova anteriormente, o estádio já remetia boas lembranças ao holandês, já que este foi o palco da incrível vingança da Holanda diante da Espanha, onde seus conterrâneos golearam os espanhóis por 5 a 1, na Copa do Mundo, quatro anos após perderem a final para este mesmo adversário. Para Thijs, que assistiu presencialmente a amarga derrota na final em Joanesburgo, a Fonte Nova ganhou um status místico devido a essa goleada.

Ao pisar na arena, percebeu que este de fato não era um estádio comum. Ao ver a torcida do Bahia, notou que havia algo de especial nela. Eles torciam de uma forma diferente, falavam, vibravam e festejavam de uma maneira que não tinha visto lugar algum. Quando o mosaico foi exposto, enquanto a torcida cantava o hino do clube, Thijs teve um vislumbre da sensação que havia sentido anos atrás ao ver a torcida do Liverpool. Nesse exato momento, a semente tricolor havia sido plantada em seu coração e ele não só sabia disso, como tinha ciência de que logo mais um amor inexplicável iria florescer. 

YouTube video
Vídeo gravado por Thijs e publicado em seu canal no YouTube.

E floresceu. Graças aos amigos que fez por aqui, que lhe deram de presente um DVD com o filme “Bahêa Minha Vida”. Com o material em mãos, Thijs, já em sua casa, na pequena vila de Reusel, pôde conhecer e se apaixonar pela história do Bahia, se sentir próximo do povo tricolor, aprender a idolatrar nossas antigas lendas, vibrar pelas conquistas, lamentando as perdas e aprendendo também a resistir nos momentos de dificuldade.

No ano seguinte, em 2016, retornou ao Brasil, determinado a dar “um passo a mais” nessa relação. Já com a intenção de se tornar sócio-torcedor, enviou um e-mail ao clube perguntando se um holandês poderia se associar. Apesar da pergunta atípica, a resposta da Central de Atendimento Sócio (CAS) do Bahia foi positiva e Thijs Schepers estava, enfim, apto a estreitar seus laços com o time estrangeiro que havia aprendido a amar.

A associação do holandês foi celebrada pela equipe de comunicação do clube, que preparou uma postagem especial nas redes sociais para informar à torcida que “além de ter um Sócio Esquadrão em cada estado do país, o Tricolor de Aço agora conta com mais um representante na Europa”.

Amizades e boas lembranças na Fonte Nova

O futebol é um meio facilitador para a criação de novas amizades. Durante o gol, é comum que completos desconhecidos se abracem como se fossem amigos de infância que se reencontraram depois de muito tempo. Mas se esse esporte também serve para criar novas relações, ele é perfeito para a perpetuação das antigas e fortalecimento dos laços.

Foi no futebol que Thijs fez e manteve boa parte de seus amigos no Brasil, indo a jogos do Bahia, participando de “babas” em campinhos e mantendo aquela boa e velha conversa sobre as partidas da semana.

Sempre que visita Salvador, ele faz questão de se reunir com o grupo Gelo Tricolor (GT), cujo lema é “ninguém bebe mais que nós”, onde a cerveja é a segunda coisa mais importante, atrás somente, é claro, do Bahia. O primeiro contato  entre eles aconteceu em 2018, quando Thijs enfrentava a fila da CAS, no Shopping Capemi, localizado no Caminho das Árvores. Já habituado ao tradicional sistema de conversas existente nas filas do Brasil, nosso torcedor holandês conheceu Éraldivan, sócio e membro do GT; com o andar da conversa, Thijs acabou sendo convidado para participar do grupo no Whatsapp e permanece até os dias de hoje.

Thijs e seus amigos do Gelo Tricolor, reunidos em um jogo do Bahia na Fonte Nova. Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal

Já virou tradição para eles se reunirem na escada 119 da Fonte Nova, perto do vidro que separa os setores Norte e Oeste, paralelos à bandeirinha de escanteio do gol da ladeira. Foi neste mesmo setor da arquibancada, com outros dois amigos, que Thijs viveu um de seus momentos mais marcantes com o Bahia.

O Brasileirão de 2018 estava na 12º rodada e o Esquadrão enfrentava um momento terrível no campeonato. Na zona de rebaixamento, com apenas nove pontos conquistados em 11 jogos e em uma sequência negativa de quatro partidas consecutivas sem vencer, o técnico Guto Ferreira havia sido demitido duas rodadas antes e Cláudio Prates, treinador interino, se encarregou da missão de comandar o Tricolor no duelo contra o Corinthians.

Se a fase do time era péssima, o horário escolhido foi pior ainda e apenas 15 mil tricolores tiveram a coragem de ir para a Fonte Nova às 21h45 de uma quarta-feira. Após o apito inicial, o jogo se mostrou extremamente favorável ao Bahia, que insistia em desperdiçar um caminhão de gols. Entre bolas na trave, boas defesas do goleiro corinthiano e zagueiro evitando o gol tricolor em cima da linha, parecia que esse não seria o dia em que Thijs veria mais um triunfo do Bahia, mas tudo mudou no segundo tempo, quando Cláudio Prates decidiu colocar o personagem da partida em campo: o chileno Mena, que entrou no lugar de Elber.

Protagonista do jogo, Mena poderia ter mudado o resultado da partida com antecedência, mas o chileno precisou de três oportunidades para abrir o placar. Logo aos cinco minutos do segundo tempo, perdeu um gol incrível quando estava livre de marcação na pequena área adversária e, mesmo assim, chutou para fora — torcedores, jogadores e membros da comissão técnica levaram as mãos à cabeça e o chiado característico da torcida começou a ecoar na Fonte Nova.

Sete minutos depois, Mena teve sua segunda chance para abrir o placar, mas a bola caprichosamente escolheu beijar a trave após uma cabeçada que mais se pareceu com um chute. O jogo já estava se encaminhando para o fim, mas o Bahia insistia em buscar o resultado e aos 45 do segundo tempo, foi finalmente a vez do chileno brilhar com um chutaço, exatamente em cima da linha da grande área, com a bola indo no ângulo, sem chances para o goleiro Walter.

Neste momento, a Fonte Nova se encontrava em êxtase, o Bahia havia vencido o Corinthians e espantou de vez a má fase que enfrentava no Brasileirão. Para Thijs, o triunfo tricolor teve um sabor especial, pois neste exato dia, quatro anos antes, a Holanda havia vencido a Espanha por 5 a 1, neste mesmo “solo sagrado”, como escolheu definir.

É graças às amizades que Thijs também consegue assistir aos jogos do Bahia quando está em solo europeu ou em qualquer outro lugar do mundo, por meio de uma conta compartilhada no Pay-per-view do Brasileirão. Seu único desafio é enfrentar o fuso horário, visto que a Holanda está quatro horas à frente do horário de Brasília.

Para os jogos à tarde e durante o fim de semana, ele alega não ver muitos problemas, mas isso se torna um sacrifício, muitas vezes inviável, em partidas noturnas em dias úteis. “Eu não posso acordar às 3h da manhã para assistir ao jogo, voltar a dormir às 5h, para depois ir trabalhar às 7h, isso não tem como”, disse em um tom quase que brincalhão.

As provas de amor que entraram para a história

Entre idas e vindas, em 2019, mesmo morando na Holanda, Thijs decidiu se tornar Sócio Acesso Garantido para se livrar da burocracia existente na compra de ingressos. Mesmo pagando mais e sem poder exercer o direito de ir a todos os jogos do time na temporada, ele entendeu que dessa forma estaria ajudando o clube.

No mesmo ano, o Bahia iniciava os planos para a construção de seu museu na Fonte Nova e estava buscando torcedores que estivessem dispostos a doar itens para exibição e quantias em dinheiro para manutenção do local, além da restauração dos troféus mais antigos. Junto com outros 682 torcedores, Thijs fez sua doação, ajudando o clube a concluir a arrecadação, entrando assim, de fato, para a história do Bahia, tendo seu nome exibido no site oficial do museu junto com o dos outros doadores.

A contribuição do nosso torcedor holandês para a perpetuação da história do Bahia não parou por aí. Em uma de suas viagens pela Europa, enquanto visitava a Bélgica, Thijs achou uma relíquia histórica da década em que o clube foi fundado. O item encontrado foi a primeira edição da Piatã: Revista Bahiana de Esportes, com data de 1935. 

Alguns itens raros do Bahia que fazem parte da coleção de Thijs. Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal

Assim que achou a revista na Bélgica, fez questão de comunicar a Luiz Teles, jornalista e historiador responsável pela organização do museu na época. Thijs e Luiz já haviam se encontrado antes, durante a primeira passagem do holandês em Salvador, quando ele mal sabia falar português. O jornalista o ajudou na pesquisa que estava fazendo para a faculdade e uma relação amistosa foi sendo construída.

Hoje, a revista encontrada por Thijs está em exposição no museu do Bahia e pode ser vista por qualquer um que decida visitá-lo. Outra marca que ele deixou no lugar foi, mais uma vez, o seu nome, mas agora fisicamente escrito em uma estrela que, junto a outras centenas, formam uma constelação de torcedores que decidiram ajudar o clube a preservar sua história.

Nenhum amor existe por acaso, ele precisa ser nutrido, desenvolvido e cuidado por aqueles que afirmam amar. O caso de Thijs com o Bahia segue essa linha, pois o clube já é uma parte inseparável de sua vida e tanto ele, quanto o clube, seja por meio de seus dirigentes, jogadores ou torcedores, fizeram com que esse amor fosse regado com o passar do tempo. 

Apesar da vontade de querer ficar com o Bahia e perto de seus amigos tricolores, Thijs possui um emprego fixo e uma vida para cuidar na Holanda, o que faz com que ele só possa viajar por lazer durante as férias.

Quando perguntado sobre o significado que o Bahia possui em sua vida, quase lhe faltaram palavras que fossem capazes de explicar o que sente pelo Esquadrão. “Vim para cá 11 vezes e assisti a 50 jogos, ou algo perto disso. É uma relação que foi se construindo ao longo do tempo, com meus amigos de arquibancada. É uma coisa que você se apaixona e não quer tirar da sua vida, o clube é diferente, a cultura da Bahia é diferente também e é tão bom ouvir as músicas no estádio, a vibração, a sensação de caldeirão, que tudo isso faz com que você fique viciado e queira voltar mais vezes”.

Nesta última visita, teve a oportunidade de assistir a dois jogos na Fonte Nova, um da Seleção Brasileira, que enfrentou o Uruguai, e outro do Bahia, contra o Palmeiras. Os resultados não foram dos melhores: um empate canarinho e uma derrota tricolor, mas isso pouco importa quando se vive para colecionar momentos.

Não há motivos para lamentar os resultados negativos, sendo que ele reviu amigos, conversou em português, jogou um “baba” com os companheiros do Gelo Tricolor e turistou por Salvador pela 11ª vez.

A pior experiência

O Bahia havia acabado de ser derrotado para o Palmeiras, por 2 a 1, dentro de casa, na 34ª rodada do Brasileirão de 2024. Dentro do estádio, a torcida tricolor expressou sua insatisfação com o resultado da partida e vaias ecoaram na Fonte Nova após o apito que encerrou o confronto. 

Saindo do estádio, subindo a Ladeira da Fonte em direção ao metrô com seus amigos, Thijs presenciou membros de um grupo de torcedores do Bahia brigando entre si. Uma cena que a princípio causa estranheza, mas que não surpreende quem está acostumado com o futebol brasileiro.

Porém, o momento de maior tensão começou quando a Polícia Militar apareceu para dispersar o conflito. Thijs só se deu conta do que estava acontecendo quando ouviu o primeiro disparo que saiu da arma de um policial, que atirou em direção à entrada do setor. Já assustado, viu outro policial correr na direção dele e de seus amigos, com uma arma apontada para eles; sua primeira reação foi correr também, mas por sorte foi segurado por um dos amigos, que o mandou ficar parado e esperar a PM passar. 

Descreveu a experiência como a mais aterrorizante de toda a sua vida e se indignou com o modus operandi da polícia baiana. “Nunca vi por aqui a polícia escolher atirar como o primeiro passo para controlar esse tipo de situação. Não consigo entender, porque a rua está cheia de pais, mães e crianças voltando para casa após o jogo”.

Apesar do susto, eles e seus amigos conseguiram retornar em segurança. Voltou para seu país na semana seguinte ao incidente e, de sua casa, pôde ver o Bahia voltar à Libertadores após 35 anos de espera.

Leia também os outros dois episódios da série Bahia pelo Mundo

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