Quando o jovem Antonio Miranda, ainda como representante comercial, desembarcou na Estação da Leste, em 1935, aos 19 anos, proveniente de Tamburi (hoje Marcionílio Souza), lá das bandas de Jequié, não imaginaria que aquela cidade, edificada nas faldas e no cume da escarpa que margeia a Baía de Todos os Santos, anos depois lhe proporcionaria duas de suas grandes paixões na vida: a Rua Chile e o Esporte Clube Bahia.
Ainda não foi nessa época que ele veio para criar raízes definitivas na cidade que Jorge Amado disse que o mistério escorre como um óleo. Fez uma paragem antes em Cruz das Almas, onde fundou a loja A Revolucionária. Casou-se com Nilza outra de suas paixões e teve cinco rebentos: Antonio, Eva, Murilo, Graziela, Virgínia. Mas como o coração era uma casa enorme, pelo alpendre da alegria e da generosidade entrou Jussara, completando o sexteto.
A Rua Direita dos Mercadores, batizada de Rua Chile, em 1902 – depois de 14 denominações diferentes -, durante muitas décadas, foi a artéria principal e pulsante da primeira capital do Brasil. A partir de 1950, passou a ser não apenas uma rua, mas companheira inseparável de Miranda e sua loja O Adamastor, casa de moda masculina que havia sido fundada por Adamastor Glauber da Rocha, pai do grande cineasta baiano Glauber Rocha, que chegou a exercer as funções de caixa nos poucos meses em que o negócio ainda encontrava-se sob propriedade da família Rocha.
O Adamastor foi um dos ícones da época de glamour da Rua Chile, com o seu footing diário que incluía ainda o magazine Duas Américas, a Slopper, o Café das Meninas, a sorveteria A Cubana e as melhores joalherias da praça. Instalada no térreo do Palace Hotel, O Adamastor era a loja de moda masculina que abastecia os cavalheiros elegantes de uma cidade ainda por demais pacata e poética.
Em sua crônica no jornal A Tarde, o jornalista Samuel Celestino recordou-se de Antonio Miranda através de uma outra figura inesquecível, a do grande jornalista Orlando Garcia, que descontava papagaios no caixa de O Adamastor. Era época de um jornalismo boêmio, de uma cidade boêmia, não mercantilista, em que o comerciante Antonio Miranda, reto e probo, inflexível no quesito honestidade, se gabava de nunca ter tido um título protestado sequer; e, também, de nunca ter cobrado juros nem correção monetária.
Meio século depois, quando se despediu da sua Rua Chile, em Maio de 2002, Miranda deixou registrado todo o seu sentimento no poema Adeus à Rua Chile:
Despeço-me, querida; estou chorando.
Jamais acreditei possível esta separação:
curvo-me, solene a tua mão beijando
com imensa tristeza no meu coração.
Cinqüenta anos de perfeita harmonia,
cumpri votos de amor e de fidelidade.
Outros te amaram e te deixaram um dia
pelos incertos caminhos da cidade.
Oh, Chile! Encantadora e minha,
lamento muito te deixar sozinha.
No torvelinho dessa ingratidão
arrancaram a tua coroa de rainha,
enriqueceram de mendigos o teu chão.
A outra paixão soteropolitana do ex-menino de Tamburi foi o Esporte Clube Bahia, nascido em 1931, cinco anos antes de sua primeira chegada à capital. E para ele foi um alumbramento assistir no Estádio da Graça aquele jovem clube de futebol, com o uniforme das três cores da Bahia, já dono de três títulos de campeão baiano em quatro disputados.
A paixão foi fulminante a ponto de Antonio Miranda, em suas orações, pedir a Deus que o levasse embora, mas não o deixasse cego, impossibilitado de ver o meu Bahia jogar.
Com o passar dos anos, além de torcedor, Miranda se envolveu na direção do Esporte Clube Bahia, levado por Osório Vilas-Boas. Foi tesoureiro do clube, membro do Conselho Deliberativo e conselheiro benemérito graças à folha de serviços prestados ao Tricolor. Quando a situação financeira mostrava-se periclitante e foram várias as crises – organizava campanhas de arrecadação de fundos ou, em diversos momentos, tirava do próprio bolso o dinheiro necessário para resolver a situação.
Nas arquibancadas especiais da nossa eterna Fonte Nova, conheci Antonio Miranda, acompanhado de seu rádio RCA, ao lado do filho Miranda. Várias vezes ele vinha de sua Fazenda Santa Rita, às margens do Paraguaçu, só pra ver o Bahia jogar.
Nos últimos anos, viúvo e em segunda núpcias com Dionizia, estava triste, muito triste com o Bahia derrotado, enxovalhado pelas humilhações das goleadas e dos seguidos rebaixamentos para as terceira e segunda divisões.
Mas, continuava um combatente, apoiando as ações da Oposição, comandadas por Fernando Jorge Carneiro. Nas eleições do Conselho Deliberativo, em Janeiro de 2006, estava lá, na sabedoria dos seus 90 anos, tentando chamar o desgoverno do Bahia à lucidez. Quase foi impedido de falar pelo energúmeno de plantão que estava na presidência do clube, mas em função dos protestos de alguns sócios, pode expressar a sua dor e dizer: não é este o meu clube que nasceu para vencer.
Não possuo ciência para tanto, mas não tenho receio em afirmar que o fechamento da Fonte Nova foi concomitante à aceleração da debilidade física do grande conselheiro benemérito e torcedor apaixonado do Bahia, Antonio Miranda, e que, fatalmente, resultou em sua morte.
Sem paixão, não tem razão nenhuma pra gente existir.
Antonio Miranda não deixou um poema escrito Adeus ao Bahia, mas é de se supor ter composto este, quando chegou ao céu, recebido por Teixeira Gomes, Bayma, Canoa, Gia, Pitangueira, Papete, Avale, Bianchi, Lessa, Isaltino, Baiano, Pedro Amorim, Gereco, Zezito Magalhães, Carlito, Alencar, Mário, Biriba, Roberto Rebouças e Picolé:
Despeço-me, Bahia; estou chorando.
Jamais acreditei possível esta separação:
curvo-me, solene o teu escudo beijando
com imensa tristeza no meu coração.
Setenta e quatro anos de perfeita harmonia,
cumpri votos de amor apaixonado.
Outros te amaram e te deixaram um dia
pelos incertos desígnios do gramado.
Oh, Bahia! Encantador e meu,
lamento muito te deixar agora.
No torvelinho dessa ingratidão
arrancaram a tua coroa de glória,
enriqueceram de vilania o teu pendão.
Aqui da Terra, das arquibancadas do novíssimo Pituaço, que você não teve tempo de conhecer, só podemos gritar, a uma só voz: Obrigado, Antonio Miranda. Sua dedicação, abnegação e paixão não serão jamais esquecidas. Vamos, avante Esquadrão! Bahia, Bahia, Bahia.
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