A grave crise institucional por que passa o Esporte Clube Bahia nos deixa como legado maior a elevação do nível de consciência do seu torcedor em geral. Com isto, temas antes não discutidos em mesas de bar ou em redes sociais vêm à tona, agora, com naturalidade. Um deles, a meu ver, dos mais difíceis, por requerer algum conhecimento sobre a legislação esportiva vigente, diz respeito aos seus efeitos sobre o universo do futebol profissional.
Temos visto, nitidamente, que a Lei 9615/98, conhecida como Lei Pelé, não foi capaz de criar mecanismos suficientes para garantir gestão democrática das entidades que movem o mundo do futebol no Brasil, desde a Confederação Brasileira de Futebol CBF, passando pelas federações estaduais, suas filiadas, até os clubes de futebol. Nesse aspecto, o Bahia dos Guimarães é sintomático.
O diagnóstico está feito. Independentemente da maior ou menor capacidade de articulação de um discurso mais ou menos sofisticado, com mais ou menos elementos fundamentadores, formou-se, a partir do que se tornou hoje o Bahia, uma consciência quase que generalizada no âmbito dos seus adeptos e simpatizantes de que a causa primária desse estado de coisas lamentável que o assola é o distanciamento da entidade em relação a essas pessoas, todos nós que nos identificamos como torcedores.
A falta de transparência, de participação popular, direta ou representativa, inclusive como meio de obtenção de importantes recursos para o crescimento do clube, já foi diagnosticada como raiz desses males, tornando-se mola propulsora dessa gigantesca e bem sucedida, até aqui, e espero continue, mobilização cujo ápice de maior impacto, tanto em termos midiáticos quanto de resultados efetivos é o Público Zero. Tudo, em última instância, visando à desprivatização do clube, a entrega-lo à sua imensa e apaixonada torcida.
A Lei Pelé procurou orientar as associações desportivas que mantêm times de futebol profissional no Brasil a adotarem um modelo que se denominou clube- empresa, o que, aparentemente, constitui avanço em relação à legislação anterior, que tratava tais entidades como detentoras de fins não lucrativos, o que evidentemente se contrapunha fortemente às transações milionárias que circundam, hodiernamente, o futebol profissional.
Para se atingir o objetivo de uma orientação democrática na gestão dos clubes de futebol, não se podem olvidar as suas especificidades. Um clube de futebol não é apenas uma empresa como outra qualquer. Ninguém torce por uma Petrobrás ou por uma marca de sucesso, como uma Coca-Cola da vida. Não, pelo menos, na acepção do que representa torcer por um time de futebol. Em certo sentido, talvez pareça até razoável se torcer pelo sucesso de uma empresa que apresente produtos de interesse social. Porém, elas não marcam gol. Ou seja, tratar de modo diferenciado objetos diferentes em essência, tais quais uma empresa comercial, diria aqui, comum e um clube de futebol, é regra elementar de equidade, necessária à busca de uma correta delimitação das coisas.
Considerando que o futebol é elemento componente do processo formador da identidade sociocultural de diversos povos, o que ocorre, especificamente, no nosso país, aos clubes, a meu ver, haveria que se impor uma natureza jurídica que os tornassem, obrigatoriamente, abertos ao povo, a todo aquele que se identificasse com uma determinada marca clubista. Afinal, que sentido faz o futebol sem a sua essência, que é a participação popular, a paixão que o fomenta?
Nesse sentido, um modelo proposto, em linhas gerais, por aqui se tratar apenas de um artigo, não dotado, portanto, de rigor científico e de aprofundamentos teóricos, seria algo que pudesse caracterizar um clube de futebol como uma sociedade anônima desportiva. Estariam, assim, todas essas entidades abertas, necessariamente, à participação popular. Não haveria qualquer crivo a tal participação. Bastaria, como numa aplicação em bolsa de valores, que o interessado pagasse, anonimamente, os valores das cotas estabelecidas, que seriam de mais de uma espécie, com direitos e obrigações compatíveis, equanimemente, aos seus valores pecuniários, para que se tornasse sócio do clube, com direito de votar e ser votado, dentro das regras estatutárias acordadas em Assembleia. Isto evitaria a sua privatização, como ocorreu com o Bahia.
Embora termos imperativos como os nessa coluna empregados em relação a não facultatividade quanto à obrigatoriedade legal que se propõe em termos de democracia nos clubes de futebol possam causar náuseas em alguns que superficialmente os abominem a priori, preconceituosamente, diria eu que, pelo contrário, antidemocrático é justamente essa não obrigatoriedade, como premissa, de abertura dos clubes de futebol, haja vista que esses, em tese, não deveriam ter donos, pois nascem, ou pelo menos os tradicionais se tornam, com o intento de conquistar as massas, de tal modo que, para tanto, não se pode alijá-las do seu processo de formação. Isto, penso, tornou-se agora claro para a Nação Tricolor.
Uma legislação que leve em consideração as especificidades do futebol, não pode prescindir de considerar o fenômeno social que ele representa, do interesse e da comoção que desperta em pessoas das mais diversas classes sociais e níveis culturais e econômicos.
Há que se considerar, também, o risco de arrefecimento dessa paixão, o que representaria o seu definhamento, na medida em que se vai dando o despertar das consciências (o que é inerente ao processo evolutivo) e essas entidades mantenedoras de clubes de futebol profissional permanecem afastadas dos seus admiradores, não lhes permitindo participação ativa na sua vida social e política, o que resulta na perda da identificação do torcedor com o clube, num processo que pode leva-los à extinção ou a uma vida moribunda, tal qual à de alguns outrora fortes, como o Ypiranga, por exemplo.
Para o ser racional é difícil, senão impossível, manter acesa a chama da paixão por alguém (ou algo) que lhe vira as costas, que não o acolhe. O Bahia da Ribeira, das eleições indiretas dos candidatos filtrados por um Conselho Deliberativo que passa ao largo da independência, das transações não esclarecidas, calcificadas, da CPU voltou, ô, ô, que tudo faz para que os seus torcedores não se associem, mantenham-se afastados e sejam praticamente expulsos do clube, que, para tanto, dobram os valores das mensalidades dos sócios, daqueles ainda esperançosos e resistentes a tantos dissabores, o Bahia das contratações em peso de jogadores, alguns inexpressivos, outros, em final de carreira; uns, descompromissados; outros, incapazes; o Bahia que pensa pequeno, que se desfaz, a troco de banana, dos seus principais atletas, reforçando os adversários, que deixa escapar atletas promissores da base, vendendo-os precocemente ou mesmo entregando-os de graça aos rivais, o Bahia que escarneia de mim, torcedor, jactando-se em Green Label e me mandando tomar onde nunca fui e não pretendo ir, não me representa.
Para o meu Bahia voltar, o que se vislumbra de mais plausível, e já se encontra em curso, é essa intensa mobilização exemplar da torcida, que transcende o velho conceito aplicável ao torcedor alienado de arquibancada, apenas preocupado com a contratação do refugo da vez ou da sequência de dois resultados positivos. Este processo antecipa o avanço necessário da nossa legislação esportiva. Afinal, via de regra, o fato social antecede a lei, que o disciplina.
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