Chovia em Salvador desde quarta-feira. Enquanto Bahia e Sport travavam uma batalha GUARARAPIANA na Ilha do Retiro, a velha Soterópolis era açoitada por trovões, relâmpagos, uivos assombrosos e água. Muita água. Até sábado choveu o previsto para todo o mês vaticinavam os meteorologistas que repetem tal mantra para toda chuva que dure mais que quatro horas. As avenidas de vale ficaram submersas. Rios transbordaram, esgotos viraram poderosos afluentes que desembocavam no mar bravo. Não havia exagero dessa vez. Chovia de tal forma que Noé, vivo fosse, construiria a Arca por conta própria, sem o sopro da Palavra de Deus.
E tal qual no livro Sagrado, cerraram-se também as fontes do abismo e as janelas dos céus, e a chuva dos céus deteve-se. Quando a chuva cessa em Salvador é um bom auspício. A chuva passou cidade e o sol vem aê [sei que você cantou esse trecho mentalmente]. Sempre chove durante a folia momesca, chuva, suor e cerveja são ingredientes que não podem faltar no caldeirão que exala o dendê de nossa baianidade.
E veio o sol. E a vendedora de churrasquinho de gato. E o cambista. E o ambulante. E o cara com bandeirão nas costas. E o maluco que vende camisa pirata. O Capitão América. E a Mamusca tricolor. O PIB da Bahia sobe em média – 15% nesses dias. A ladeira da Fonte da Pedras era aquela balbúrdia fumacenta, tocando arrocha tricolor, bandeiras agitadas, camisas históricas, todas em três cores. Neste domingo, como em muitos do passado, aquela ladeira era o microcosmo da Velha Cidade da Bahia. Uma alegria que há muito não se via, a tensão que antecede todo jogo decisivo sublimada por velhos encontros.
O maior de todos: Da torcida do Bahia com a Fonte Nova.
Galeano, o escritor que desceu aos vestiários na segunda, dizia que um estádio não se faz com palco de mármore, corrimões de ouro e tribunas atapetadas. Se faz de história. O antigo palco, a Velha Fonte, guardava milhares de grandes lances, de memoráveis feitos. Inclusive de Galeano, o volante, que num domingo de abril fez um gol de bicicleta em um clássico Ba-Vi. A aura de um estádio se faz, sobretudo de torcida. De vaias, de aplausos, de apupos, de cânticos, de palavrões. E a Fonte Nova desde a reinauguração padecia dessa aura. Pela arenização burra. Pela setorização perversa. E até pela falta de confiança e identificação dos tricolores com o time do Bahêa. A Fonte Nova voltou a ser a casa do Esquadrão mas nunca tinha sido o lar.
O clima havia mudado. Faltava o jogo. E era necessário um jogo à altura. Uma pugna renhida, um embate cruento, uma peleja disputada encarniçadamente. “A torcida precisa ser batizada numa batalha calorosa, marcada a ferro. Precisa sofrer para sentir pertencimento na hora de celebrar”. Não é Galeano, não é escritor, nem volante. É meia não sabe fazer gols e é meu amigo Luciano, um sábio que usa as redes sociais para espalhar discórdia, falsas correntes, sarcasmo e algumas reflexões de grande valia. Como essa que eu pincei.
A partida teve a dose de agonia necessária para torná-la inolvidável. Quando o Sport abriu o placar, ainda no primeiro quarto do jogo, a tensão no ar era tão densa que seria possível cortá-la com uma faca. O Bahia em nada parecia o time desse trimestre: Nervoso, afobado, intranquilo, parecia que a bola estava quente como o núcleo de uma supernova. Willians Santana era o retrato dessa azáfama: Todas as bolas em sua direção acertavam-lhe as canelas. Alguma das dezessete que ele tem espalhada pelo corpo.
O apito final do primeiro tempo foi um silvo de alívio. O tempo que o torcedor usaria para esvaziar ou encher a bexiga o Bahia deveria usar para, enfim reencontrar o futebol esquecido em algum canto da memória coletiva do torcedor. E foi atacando para a baliza das Fontes das Pedras, o gol de Raudinei, que Souza emulando CABO LIMA um dos maiores volantes que jogaram na Velha Fonte emendou um petardo que certamente fez rir o sergipano. O primeiro gol dele pelo Bahia. Faltavam 83 para alcançar o grande mito.
O que aconteceu deste momento em diante, a ciência não explica, a parapsicologia não justifica e apenas o futebol proporciona. O estádio foi tomado por um frenesi tal que Souza incorporou algum tipo de Orixá Ruivo: Pegou a bola e cobrou a penalidade máxima com a tranquilidade de quem cobra o tiro livre contra o filho de dez anos. Envergando a lendária OITO tricolor, distribuiu passes como Mário e desarmou como Bebeto Campos. A falha de Douglas Pires foi apenas o anti-clímax antes do desfecho final: Um chute forte, da pequena área, após uma barafunda dos infernos. A bola, caprichosa, esperava pelo pontapé do camisa OITO, tal qual esperou por Bobô na final contra o Internacional antes de estufar as redes. No Bahia, o OITO é o dez, é o redentor, é o infinito que foi posto de pé e nos levará avante. E além.
O jogo poderia acabar ali. O verdadeiro objetivo estava cumprido. A torcida mais que um time vibrante, tinha um lar para vibrar. Um estádio, com alma, com essência. Não apenas cadeiras vazias, planilhas incompletas, camarotes abandonados. Ainda houve um chute arteiro do adversário, no último minuto, que fez com que tudo apagasse à minha frente e um silêncio sepulcral imperasse por três eternos segundos. Silêncio interrompido pelo som da bateria da torcida, pela vibração por uma classificação épica, pelo cântico de felicidade e orgulho que se espalhou pela cidade. O som que permite finalmente concluir: A Fonte Nova voltou a ser um estádio de futebol.
ADENDO
Urge, em meio à euforia do momento, que a organização do estádio recoloque a rede “véu de noiva” nas balizas da Fonte. Não é padrão FIFA, mas é o nosso padrão: A rede feita para aninhar a bola no fundo quando rasteira, para estufar num chute desferido com violência. É ela que obriga o goleiro a ir buscá-la, trazê-la de volta naqueles segundos após a catarse do gol. A Copa do Mundo se foi, o estádio ficou: No sagrado lar o aconchego está nos pequenos detalhes.
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