Todas as pessoas que conheço já foram ver o filme Bahêa Minha Vida. Tá bom, não todas, mas uma boa parte delas. Uma parte substancial mesmo. OK, devo levar em consideração que não conheço tantas pessoas assim e, entre as que conheço, existe uma porção de degenerados e infelizes que não possuem a graça de torcer pelo Bahia.
Ainda assim, eu estou com a estranha sensação de que sou a única pessoa abaixo da linha do Equador e a oeste do meridiano de Greenwich que ainda não foi submetida à profusão de imagens e sons e lembranças que têm encharcado, ensopado e inundado de lágrimas as salas de cinema e corredores e praças e estacionamentos dos shoppings nos quais os filme se encontra em cartaz.
Isso dá uma sensação de ineqüidade miserável! Bate uma… sabe como é… dor de corno, mesmo. Todo o mundo lá passando os olhos e a mão no que é meu e eu… na mão. É como se eu estivesse sendo traído e fosse o primeiro a saber. Mas, como todo corno paradigmático sabe, é preciso encontrar atenuantes para a situação, os quais se converterão em outros adjetivos como conformado e convencido.
Eu já disse reiteradamente aqui neste espaço que o Bahia é meu. Portanto, essa intimidade me dá alguns privilégios que nenhum outro amante poderá usurpar ou compartilhar. Há momentos únicos na minha história com o Bahia que jamais poderão ser transpostos para a tela.
Como um filme poderá captar a sensação de deslumbramento e expectativa apenas por ver, da janela do pensionato em que morei na Joana Angélica ou de vários outros pontos da cidade, o clarão dos refletores da Fonte acesos nas noites de jogos do Bahia?
Que sistemas de som reproduzirão o impacto dos gritos de gol do Bahia (e só do Bahia) gerados na Fonte e ouvidos a quilômetros de distância dela, quando parecia que a cidade, qual um foguete espacial, se projetava decolando da plataforma de lançamento e que o planeta inteiro estava se elevando em brados à estratosfera?
Em que película ficou registrado o momento em que toquei o abdômen grávido de minha mulher e pedi para meu primeiro filho dar um sinal, caso o Bahia fosse conseguir fazer os cinco gols que precisava contra o Santa Cruz, e ele se projetou imediatamente com o pezinho, distendendo demoradamente a barriga que o acolhia para além do presumivelmente tolerável?
Que aparelho registrou o meu coração batendo na boca no momento em que Arthur se preparava para converter o pênalti que nos deu o campeonato de 1971 em cima do rival? E que dispositivo captou o evento em que esse mesmo coração saiu pela boca num grito desvairado de gol no instante em que a bola chutada pela perna canhota de Arthur se dirigiu para as redes no mesmíssimo local em que uma pomba com fitas tricolores do Senhor do Bonfim houvera pousado antes do início do jogo, após dar algumas voltas por todo o estádio?
Que esforço de reportagem apreendeu o fato protagonizado por meu pai que, hospitalizado e semiparalisado pelo terceiro derrame cerebral, me exigiu que fosse levado de ambulância até a sua sessão eleitoral apenas para votar em Paulo Maracajá para deputado estadual, porque não queria morrer sem ajudar o Bahia de alguma maneira e achava essa a melhor forma? Que outras testemunhas que não as minhas retinas viram-no ser conduzido na maca para dentro da sessão, pelejar demoradamente para assinar o nome com a mão esquerda (era destro, mas o lado direito estava paralisado), pedir para que tirasse o santinho do bolso do seu pijama para ele conferir e escrever corretamente o número desse único candidato em quem votou nessa eleição e ser levado de volta com uma expressão de satisfação, que apressou a sua alta hospitalar?
Quem foi que me focalizou no momento do gol de Raudinei para flagrar que eu fui, inadvertidamente, arremessado para o ar por um policial eufórico que se encontrava a meu lado no último lance da arquibancada superior da torcida do Bahia, e que provocou um balé aéreo do meu corpo, do meu radinho de pilha e da minha penca de chaves, causando-me um tremendo conflito entre a comemoração do gol e a busca dos objetos dispersos e pisoteados efusivamente pela multidão? Quem me viu procurando as pilhas no meio da urina? Quem presenciou meu momento de lucidez ao deixar tudo aquilo pra lá e me contentar apenas com as chaves e comemorar, comemorar, comemorar… até hoje?
Essas são algumas cenas de um filme não realizado em película. Mas o roteiro está todo aqui. Íntegro. Vívido como se fosse hoje. Eu o vejo em sessões privadas sem nostalgia, mas com as lágrimas de alegria de tê-lo protagonizado com a cumplicidade do meu time do coração. Essa é a Minha Vida com o Bahêa!
comentários
Aviso: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do ecbahia.com.
É vetada a inserção de comentários que violem a lei, a moral, os bons costumes ou direitos de terceiros.
O ecbahia.com poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios
impostos neste aviso ou que estejam fora do tema proposto.