Sumário
Introdução
Assim como Buenos Aires, Londres também respira futebol. Não é um dado espantoso, afinal, a Inglaterra é o berço do esporte e responsável por difundi-lo por todo o mundo. Dentre as dezenas de clubes profissionais localizados na capital britânica, podemos destacar três potências no cenário mundial do esporte: Chelsea, Tottenham e Arsenal. Este último, também conhecido pela alcunha de “gunners”, divide espaço com o Bahia e expressa a divisão existente no personagem deste capítulo, que alega ser 100% gringo e 100% baiano, mas que, acima de tudo, possui o coração tricolor.
A dualidade está presente na vida de Joseph Wolchover desde os seus primeiros instantes de vida. Filho de mãe baiana com pai inglês, Joe nasceu em Londres, já com direito a uma dupla nacionalidade, destinado a se ver dividido entre as influências culturais herdadas de seus pais, procurando encontrar um ponto de equilíbrio entre seus lados paterno e materno.
Passou parte de sua infância morando em Salvador, o que contribuiu para que o seu sentimento de pertencimento fosse diferente do que existe em outras pessoas. Afinal, da mesma forma que ele pertence aos dois lados, uma linha tênue o separa de pertencer a nenhum dos dois. Apesar disso e da dúvida existente na cabeça de uma criança que é exposta a realidades extremamente diferentes, Joe sempre sentiu que seu sangue era mais denso como dendê do que ralo como um chá.
Entre “OKs” e “VIUs”, o tempo fez com que Joe abraçasse cada vez mais seu lado baiano, o que resultou na vontade de realizar um intercâmbio, ainda aos 13 anos, para estudar em um colégio de Salvador. Foi estudando na capital baiana que Joe fortaleceu seu elo e criou laços com o “lado de cá”, já com a certeza de que era aqui que queria viver.
Em um tom que mistura indignação com uma pitada de brincadeira, Joe dispara: “Odeio Londres, odeio o clima de Londres, faz frio o ano inteiro e eu sou mais calorento, sabe?”. A frieza inglesa, no entanto, não é vista somente no clima, podendo também ser percebida nas relações interpessoais, ou melhor, na falta dessas relações.
Para exemplificar o que foi dito a respeito da forma com que os britânicos lidam com outras pessoas, Joe utilizou como exemplo o dia em que estava aguardando o transporte em um ponto de ônibus londrino. Agasalhado e com um capuz cobrindo a cabeça para se proteger do frio que tanto odeia, sentiu um forte cheiro perto de onde estava. Para ter certeza de que ele não era a razão do odor desconfortável, fez questão de conferir os rostos das outras pessoas que estavam um pouco mais afastadas dele, e ao perceber que não era ele o motivo, sentiu uma ligeira uma sensação de alívio, mas que logo depois foi superada por uma decepção nostálgica.
Se estivesse em Salvador, pensa, todos já estariam comentando e reclamando do fedor, uma mulher já teria gritado: “que tutun da desgrama é esse?”, enquanto um homem alegaria que “mataram um bicho aqui perto”, alguns ririam e o incômodo se transformaria em uma típica conversa baiana entre totais desconhecidos. De volta para a realidade, coagido pelo ambiente e também influenciado pela espiral do silêncio, Joe permaneceu calado em meio ao mau cheiro, assim como os outros que por lá estavam.
Essa diferença entre o baiano e o inglês, que também dividem espaço em sua mente, foi um dos motivos que o fez se aprofundar no ramo da antropologia, faculdade que escolheu cursar em Londres. Joe acredita que o estudo antropológico pode o levar a entender o que passa em sua mente, sente que conhecendo a fundo as nuances existentes nas duas culturas, pode também conhecer a si mesmo e tornar-se capaz de solucionar seus próprios mistérios.
O que o resto separa, a bola une
Se existe algo que possa ligar brasileiros e ingleses a ponto de que se sintam como se fossem de uma única nação, é o futebol. O esporte, que foi criado por eles, mas aperfeiçoado por nós, é uma das poucas coisas que se unem em meio a dualidade existente na vida de Joe. Existem diferenças, claro, mas durante os noventa minutos são vinte e dois jogadores em campo, uma bola e incontáveis espectadores, todos sedentos pelo grito de gol, o berro que une desconhecidos e é capaz de esquentar até os gélidos corações britânicos. É assim em qualquer lugar do mundo.
No Brasil, no entanto, o futebol é praticado sobre qualquer terreno, onde qualquer objeto, seja ele esférico ou não, pode ser utilizado como bola. Essa peculiaridade presente nos “babas” de rua, sempre chamou a atenção de Joe, principalmente no período em que viveu por aqui. Isso porque, apesar de ter o mesmo esporte como base, a cultura futebolística da Inglaterra, em geral, costuma ser mais “burocrática”. Segundo ele, por lá não existem muitos espaços para praticar as inúmeras adaptações não homologadas do futebol e as opções acabam sendo escassas, geralmente se resumindo a fazer parte de um time juvenil ou de uma equipe amadora.
Dificilmente se consegue juntar os amigos e disputar um golzinho, aquele onde as sandálias se transformam em traves, em meio aos carros que passam pelas ruas. Joe lembra até de um episódio em que participou de um torneio interclasse de sua escola durante o intercâmbio. Apesar da lembrança, preferiu não se aprofundar em relação ao resultado, que, na verdade, pouco teve importância se comparado com a marca que essa experiência deixou em sua vida.
Foi jogando bola por aqui que ele percebeu que no solo brasileiro é encontrado um tipo de liberdade capaz de beirar a magia, onde qualquer palco, por mais simples que seja, se transforma em um estádio lotado, onde qualquer partida, independente das regras adotadas ou quantidade de jogadores, se torna tão importante quanto uma final de Copa do Mundo. Isso pode até não ser algo único e exclusivo do Brasil, mas emanamos naturalmente uma aura futebolística que com certeza se faz mais forte em nossa terra, sendo capaz de encantar todos que a venham conhecer.
Se por aqui a cultura do futebol informal é notadamente mais forte, na Inglaterra existe algo que dificilmente é encontrado nas grandes cidades brasileiras: as relações com os pequenos clubes de bairros. Esses times, que transitam entre o amadorismo e o semiprofissionalismo, fazem parte da vida do inglês apaixonado por futebol, o que também se faz presente na trajetória de Joe, que cita sua conexão com o modesto Barnet Football Club, equipe que peleia entre as divisões inferiores do futebol inglês. Apesar de ser pouco conhecido, o Barnet foi fundado há mais de 130 anos, carregando consigo legados existentes desde os primórdios do futebol.
Grande parte desses clubes de bairro da Inglaterra, ofuscados pelo dinheiro e glamour da Premier League, são extremamente antigos, o que faz com que esse carinho pelos menores seja passado de geração em geração, como uma espécie de herança cultural. Joe, que alega não consumir muito do futebol que vá além das partidas de Bahia e Arsenal, revela que sente, sim, um carinho pela pequena equipe do subúrbio de Londres, uma simpatia que o fez visitar algumas vezes as arquibancadas laranjas do The Hive Stadium.
O Bahia em sua vida, uma herança familiar
Se Joe se sente mais baiano do que britânico, muito disso se deve a influência que sua família, por parte de mãe, teve em sua criação. Atribui esse mérito a seu tio Antonio Pádua, a quem cita com um singelo e delicado sorriso, que simboliza sua clara admiração por ele. Foi seu tio quem fez com que ele se tornasse torcedor do Bahia, fazendo com que o Esquadrão se sobressaísse diante do fenômeno mundial chamado Arsenal. O clube londrino, que antes ocupava um lugar único em seu coração, se viu obrigado a dividir espaço com um baiano ousado que por todo canto que vai alega ter nascido para vencer.
Em alguns casos a distância costuma enfraquecer os laços, mas esse fator teve o efeito contrário na relação de Joe com o Bahia. Após desenvolver afeto pelo Esquadrão, ele sempre fez questão de proclamar o nome do clube em meio às rodas de discussão que tinha com seus amigos ingleses, afirmando que um dia todos o iriam conhecer. Quis o destino que anos depois o Bahia viajasse para a Inglaterra e organizasse um evento anual para divulgar sua marca em solo britânico, o “Bahia Day”.
Por morar em outro continente, teve poucas oportunidades de assistir o Bahia na Fonte Nova, mas teve o prazer de presenciar a mística tricolor em sua forma mais pura justamente na sua primeira visita ao estádio.
Como de costume, a casa estava cheia e mais de 36 mil pessoas foram à Arena para assistir o confronto entre Bahia e Sampaio Corrêa, pela 35ª rodada da Série B de 2016. O que ninguém sabia é que no meio desse mar de gente estava um jovem baiano que nasceu na Inglaterra e ansiava por saber se tinha pé quente ou não. O jogo era importantíssimo, o Bahia brigava pelo acesso e precisava vencer para se consolidar no G4; o adversário era o lanterna da competição e estava praticamente rebaixado, mas quem torce para o Bahia sabe a dificuldade que o time encontra nesses momentos de pressão contra equipes fragilizadas.
O gol não saia de forma alguma, vaias e reclamações já podiam ser ouvidas em qualquer setor do estádio. Tudo parecia ter ido por água abaixo até que, aos 47’ do segundo tempo, com um sutil toque de calcanhar, o zagueiro Tiago deixou Hernane livre, de cara com o goleiro. Nesse momento, toda inquietação e burburinhos que vinham da torcida foram automaticamente mutados por alguns milésimos de segundos. Silêncio total na Fonte Nova. Em câmera lenta, todo torcedor por lá presente observou o lance como se esse fosse seu último momento de vida. “O que ele vai fazer?”, “chuta!”, “é agora!”, “vai, Hernane!”, essas palavras ecoavam na mente de todos.
E de repente, todo o silêncio e apreensão no ar da Fonte Nova se transformaram em eufóricos gritos de alívio, que deram a Joe a certeza de que seu pé era de fato quente e que havia dado sorte para o Bahia.
Como é de conhecimento popular, é praticamente impossível visitar a Fonte Nova e não se apaixonar pela torcida do Bahia, ainda mais quando você sente que faz parte dela. Em sua inesquecível primeira visita, Joe notou algumas diferenças em comparação ao público que frequenta o Emirates Stadium, casa do Arsenal. Por lá, raramente sobram cadeiras vazias na arquibancada, com a maioria dos jogos tendo sua ocupação próxima a lotação máxima, algo que dificilmente veremos em uma arena brasileira, devido aos preços dos ingressos, questões de segurança e infelizes aglomerações nas escadas de acesso. Mas o que chamou atenção foi a presença da torcida na partida, que participa ativamente de cada lance, seja apoiando ou protestando.
“Aqui [em Londres] eles cantam em algumas partes do jogo, mas passam um bom tempo calados, em silêncio, só assistindo a partida. O que vi nas vezes em que fui à Fonte Nova foi diferente, a torcida do Bahia canta durante o jogo inteiro. É incrível”. Outra diferença que cita é a forma com que os torcedores tratam os atletas. Enquanto no Brasil a torcida age de forma mais passional, muitas vezes flertando com a agressividade, o torcedor inglês tende a ser mais contido.
“Quando fui para Bahia e Santos, em 2023, percebi que tinha muitos torcedores vaiando alguns jogadores e isso não costuma acontecer aqui. Até entendo essa reação, acho que é por causa das questões culturais e imagino até que financeiras. No Brasil o torcedor costuma deixar até de comer e ter lazer para assistir o time jogar no estádio, é como se o jogo do Bahia fosse a parte mais importante de sua vida e acho justas as reclamações”.
O exemplo dado por Joe lembra bastante um relato do saudoso torcedor símbolo Rubi Confete, que afirmava que em caso de triunfo do Bahia, seria capaz de seguir sorrindo mesmo após passar uma semana com fome.
O milagre do Bahia em um pub londrino
Assim como os brasileiros, os ingleses que não conseguem ir ao estádio, mas ainda assim desejam se reunir com outros torcedores do seu time, costumam frequentar bares para assistir as partidas. Chamados de Pubs, esses pontos de encontro são bastante comuns na Inglaterra, fazendo parte da cultura secular inglesa, não estando ligado apenas ao futebol. Por ter trabalhado em um deles por um certo período de tempo, Joe conhece bem o funcionamento em dias de jogos, onde a atenção e o cuidado devem ser redobrados, principalmente quando o local é tomado por torcedores das equipes visitantes.
Em mais um de seus dias de trabalho, o pub no qual Joe era funcionário foi o escolhido por torcedores do Manchester United que queriam se reunir para assistir a partida da equipe que em instantes entraria em campo em algum estádio de Londres. Ele não se lembra ao certo contra quem foi a partida, mas como lembraria? Devido ao caos presente nos dias de jogo, precisou trabalhar como se fosse três pessoas, ou até mais. Definitivamente não gostava de quando os jogos aconteciam no seu turno, principalmente os que envolviam o Arsenal, afinal, não conseguia assistir e ainda tinha que lidar com torcedores bêbados que comumente ficam a um fio de arrumar confusão por besteira.
Por vezes precisava trabalhar durante a madrugada, o que acabava coincidindo com o horário de muitos jogos do Bahia no meio de semana. Na partida contra o Atlético Mineiro, na última rodada do Brasileirão de 2023, por exemplo, Joe era um dos responsáveis pelo turno da madrugada. Nesse jogo, o Bahia precisava de um milagre para permanecer na primeira divisão; além de precisar vencer o Atlético, que ainda tinha chances remotas de título, o torcedor do Esquadrão também tinha que torcer por uma combinação de resultados.
Esse cenário caótico fez com que muitos torcedores ativassem as notificações para alerta de gol nas partidas do Vasco contra o Red Bull Bragantino e do Santos contra o Fortaleza. Joe foi um deles, aliás, até o jogo do Bahia precisou acompanhar por meio das notificações, já que estava trabalhando e não possui muita afinidade com meios online para assistir as partidas do Brasileirão.
Já eram quase duas da manhã na Inglaterra quando a bola rolou na Fonte Nova e o relógio já beirava as quatro horas quando Lucero, do Fortaleza, marcou o gol que rebaixou o Santos e selou a permanência do Bahia na primeira divisão, que havia vencido seu confronto por 4 a 1. Um momento de euforia sem igual.
Mesmo sem estar assistindo a partida e estando a mais de oito mil quilômetros de distância, Joe vibrou como qualquer torcedor do Bahia, aliviado e feliz pela permanência do clube na primeira divisão. Conta também, que após o fim de seu turno, voltou para casa gritando de felicidade, rompendo o silêncio das serenas ruas da madrugada londrina. O milagre aconteceu e para ele, isso sempre estará ligado a este pub.
O sucesso e a retribuição do carinho em uma noite especial
No início de 2024, Joe viralizou com seus vídeos na internet, conseguindo milhões de visualizações e milhares de seguidores em suas redes sociais. Neste ano, o “Gringo Baiano” mostrou ser mais que um influencer, mas uma pessoa capaz de gerar sorrisos simplesmente por demonstrar ser aquilo que realmente é. Foi abordando os contrastes entre seus lados baiano e inglês, que Joe cativou o público e a imprensa, sendo convidado para dar entrevistas a grandes jornais e também para a televisão.
Como um bom tricolor, Joe nunca escondeu sua paixão pelo Bahia e corriqueiramente aparece vestindo o manto do Esquadrão em seus vídeos. O sucesso, atrelado à sua paixão pelo clube, fizeram com que a equipe de marketing do Bahia o convidasse para assistir um jogo no camarote “Esquadrão Zone”, na Fonte Nova.
Não bastasse o convite, Joe também ganhou o direito de levar consigo um acompanhante para viver essa experiência especial. Quando soube da notícia, não conseguiu pensar em outra pessoa que não fosse seu tio Pádua, o grande responsável por torná-lo torcedor do Bahia e, consequentemente, a razão dele ter recebido o convite. Afinal, todo grande acontecimento é resultado de pequenos momentos que influenciam, aos poucos, o rumo de nossas vidas. Não levou somente seu tio, fez questão de proporcionar essa experiência para seu primo e amigo, pessoas que também um papel importante em sua vida.
Do ponto de vista do seu tio, a experiência foi ainda mais emocionante. Pois lá, viu seu sobrinho, que um dia foi apenas o pequeno Joe, um garotinho anglo-brasileiro que misturava palavras em inglês e português, agora transformado em um completo adulto, sendo tietado por torcedores e torcedoras, recebendo brindes, conversando e resenhando com os jogadores do clube que aprendeu a amar.
Quem poderia imaginar que isso um dia aconteceria? É obra do destino, fruto de muito trabalho ou simplesmente o caminho natural da vida? Seja lá qual for a resposta adequada para essas perguntas, o importante é que Pádua estava vendo um sonho acontecer diante de seus olhos, a confirmação do sucesso e da felicidade do sobrinho que tanto ama.
A noite, que já era perfeita, tornou-se ainda mais especial quando o árbitro assoou o apito pela última vez, dando a todos a confirmação do triunfo do Bahia, que bateu o Red Bull Bragantino por 1 a 0 na sexta rodada do Brasileirão e passou a dividir a liderança do campeonato com o Athletico Paranaense.
Um momento inesquecível de euforia completa, alegria compartilhada e sonhos realizados. Apesar da força dos sentimentos anteriormente citados, todos eles podem ser resumidos em uma única palavra: amor. Foi expressando seu amor ao tio que Joe encerrou a noite do dia 12 de maio, dizendo: “titio, estou muito feliz por poder dar este presente para as pessoas que amo”, palavras que foram responsáveis por arrancar um orgulhoso suspiro de Pádua, admirado por ver o homem que seu sobrinho havia se tornado.
Não posso afirmar que todos que estavam no estádio saíram felizes, seja com o resultado ou pela performance do time, mas alego, sem um pingo de dúvida, que nenhum ser vivo em toda a Salvador esbanjou mais felicidade que esses dois.
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